Esta Centelha que o leitor tem em mãos abarca dois tempos, situados nos dois extremos do sonho do desterro. O primeiro ciclo de poemas, de ‘Acaba com minha voz’ a ‘Bloco de notas’, escrito entre 2002 e 2008 aproximadamente, prenuncia a partida da autora para o Brasil, onde viveria por cerca de sete anos e se dedicaria à realização de uma obra cinematográfica documental de profunda delicadeza e engajamento. Somam-se a esses os poemas escritos após seu regresso a Portugal, em 2017, por ocasião de uma residência literária no Teatro do Silêncio, em Carnide. Entre esses dois tempos reunidos, a fricção de que nasce a Centelha, título de um de seus poemas mais recentes.
“Acaba com minha voz, começa com meu corpo inteiro”. Esse impactante verso de abertura desata uma das forças motrizes do livro, um ímpeto para a dissolução que se revela ora nessa súplica a um outro, ora na negociação com certa violência simbólica, ora no explícito desejo de fuga da paisagem familiar, num movimento de aura rimbaudiana como lemos em ‘Sentamo-nos lá fora?’: “Quero ir para lá das ruas. Negociar o preço da minha sorte./ Pôr-me num navio para navegar à deriva”. Conforme o desejo avança, esse sujeito cindido vai se metamorfoseando, como no quimérico autorretrato de ‘A inspiração?’: “Eu sou uma ave./ Tenho as costelas de uma vaca./ Os olhos de todos os animais.” Em ‘Daqui a nada’, refulge por fim o ansiado verão perene no horizonte da partida: “Eu tenho planícies a perder de vista/ dentro de mim um riso perdido sabe/ que há um sol inominável que me guarda o corpo.” O corpo, novamente o corpo, ambígua morada que avança pelo caminho sazonal dos pássaros.
Não à toa a intensa carga erótica de alguns poemas, que resvala num desejo de agarrar-se à impermanência, de gargalhar frente à erosão perpétua do todo-poderoso teatro das nações, como nestes belos versos de ‘Para que as mães se sobressaltem’: “A vida é para nós uma torrente de sais / sob um manancial de armas.” Ou, também, em ‘Acaba com a minha voz’, onde esse jargão enleia o jogo mais íntimo: “Só o nosso ridículo de que eu tanto gosto (…) e a nossa maneira triste de brincar às guerras e às cidades.” Na alcova, afinal, vinga-se a angústia e a desesperança.
Com seus versos livres carregados de mapas, direções, instantâneos de vidas alheias, objetos cotidianos alçados a símbolos, manchetes corrompidas, paixões inebriantes e vagalhões imaginários, esta Centelha de Rita Brás é uma viagem vertiginosa aos cantões da epifania, onde se descobre que partir é também regressar, e que nem mesmo a paisagem mais arraigada ou os olhos do amor podem permanecer a salvo das incessantes transformações a que nos entregamos na imensa aventura da descoberta de si.Camila de Moura
Acaba com a minha voz,
começa com o meu corpo inteiro.
Vi nas nuvens, estava escrito, há muito tempo.
Há muito tempo.
Nada começa — já tudo mudou, e não há um fim.
Só o nosso rídiculo de que eu tanto gosto,
e as nossas asneiras, os nossos disparates.
O ar sério que pomos quando estamos irritados
e a nossa maneira triste de brincar às guerras e às cidades,
aos amantes, exactamente como perguntam os rapazes.
_outras informações
- isbn: 978-65-5900-443-0
- idioma: português
- encadernação: brochura
- formato: 13x16,5cm
- páginas: 64 páginas
- papel polén 90g
- ano de edição: 2023
- edição: 1ª
Centelha - Rita Brás
Até 5 dias úteis.